Imóvel Público e o Usucapião!
USUCAPIÃO DE IMÓVEL PÚBLICO, É POSSÍVEL?
Dr. Cleverson Reginato
Alguns dias chegou até o escritório um cliente para consulta de um processo em andamento com o seguinte quadro fático:
“Dr. a muitos anos cerquei e construí um barracão para atividade industrial em área pública. O poder público depois de muito tempo, ajuizou ação de reintegração de posse. Em defesa, meu advogado alegou a boa fé na posse e que tínhamos feito um requerimento administrativo requerendo a regularização da propriedade. No pior dos cenários, informei ao advogado que caso o pedido do ente público fosse procedente, o que se espera é o direito de indenização pelas benfeitorias feitas no terreno público, pra se evitar um prejuízo ainda maior”.
Pois bem, a decisão foi desfavorável ao cliente, o que motivou a procura por este escritório e uma segunda opinião sobre a decisão judicial que seguiu a jurisprudência, uma vez que no entendimento do Juiz havia mera detenção sobre o bem público, não reconhecendo a posse a quem não poderia ser proprietário por proibição legal Constitucional, não cabendo sequer indenização pelas benfeitorias, sendo intimado a deixar o terreno.
Desta consulta, surgiu a presente pesquisa que passamos a compartilhar, uma vez que sua situação pode ser semelhante ao vivenciado pelo cliente acima.
1. DEFINIÇÃO E CONCEITO
Primeiro cumpre dizer que Posse é a exteriorização da propriedade, o possuidor é aquele que age como se fosse proprietário.
A posse por outro lado é diferente da detenção. A diferença, porém, está na forma como se encara a posse, a depender da teoria, como mostraremos mais adiante.
Há ainda quem distinga a detenção da tença, como o faz Camargo Penteado. A tença é ainda menos que a detenção (que é menos que a posse). A tença se verificaria nas situações em que materialmente há apreensão física de uma coisa por alguém, mas sem qualquer consequência jurídica. É o caso de um colega que apanha um objeto meu que cai no chão e me entrega incontinenti (em seguida).
A detenção, podemos dizer desde já, é menos que a posse, ou seja, é uma situação de aparente posse, mas que não tem elementos necessários para configurá-la. Ela é apenas um fantasma, um arremedo, fâmulo de posse; parece, mas não é.
O Código Civil de 2002 estabelece as três situações em que se verifica a mera detenção, já que ela se origina de:
- Ordem de outrem em manter uma “posse”, mas sem animus de mantê-la (art. 1198);
- Atos de mera tolerância do proprietário (primeira parte do art. 1208);
- Situação de posse violenta ou clandestina (segunda parte do art. 1208);
De maneira genérica, é difícil distinguir o possuidor do detentor. Numa fotografia ou num filme, todo aquele que está com alguma coisa consigo aparenta ser possuidor. Visualmente falando, não há distinção entre um e outro. A distinção entre os dois institutos é vista casuisticamente e depende de análise mais aprofundada, que “foge ao olho”.
Por exemplo, uma pessoa num carro. Ela me parece não apenas a possuidora como também a proprietária desse veículo. Como eu saberei que ela não é possuidora do veículo? Se sei que ela furtou o carro, sei que é mera detentora (3); se é um funcionário usando o veículo da sociedade empresarial, detentora (1); se é meu amigo, a quem eu tolerei o uso, sem emprestar, detentora (2).
Não à toa, o Enunciado 301 da IV Jornada de Direito Civil deixa claro que é possível a conversão da detenção em posse, desde que rompida a subordinação, na hipótese de exercício em nome próprio dos atos possessórios (1). Assim, quando o caseiro (detentor), tem o vínculo de trabalho rompido, mas permanece no imóvel, sem ser molestado pelo proprietário, ele se transforma em possuidor, pois cessada a subordinação que sustentava a detenção.
Em resumo, o detentor, também chamado de gestor da posse, detentor dependente ou mesmo servidor da posse, detém a coisa em virtude de uma situação acessória, seja por subordinação (1), seja por dependência de outrem (2) ou de uma situação (3). Como não é possuidor, o detentor não faz jus à proteção possessória ou a quaisquer dos direitos que dela decorrem (a exemplo da indenização por benfeitorias).
Ainda assim, esclarece o Enunciado 493 da V Jornada de Direito Civil que o detentor pode, no interesse do possuidor, exercer a autodefesa do bem sob seu poder. Evidente, uma vez que o detentor é, ao menos aparentemente, possuidor, pelo que pode tutelar a posse vera e própria de outrem imediatamente.
Na classificação ordinatória da apreensão de algo por alguém, começo com a tença (uma “detenção” fugaz e sem consequência jurídica), passo à detenção (uma “posse” subordinada a algo ou alguém), posteriormente à posse (uma “propriedade” ao menos presuntiva), até chegar, finalmente, à propriedade (a apreensão da coisa em conformidade com o direito real pleno). Veja que essas distinções todas acabam, ao fim e ao cabo, apenas justificando a propriedade, o “direito real pleno”.
Além disso, a questão da “posse” de bem público sempre foi muito debatida na doutrina nacional e encontra na jurisprudência amplo terreno para discussões. Em razão da perspectiva trazida pela funcionalização socioambiental da posse, para além da funcionalização da própria propriedade, já no final dos anos 1980 parte da doutrina passou a defender a possibilidade de usucapião de bens públicos.
Isso porque, se a propriedade privada precisava ser funcionalizada, a propriedade pública também não poderia escapar da funcionalização socioambiental. No entanto, a jurisprudência dos tribunais estaduais, de maneira quase unânime, sempre apontou para a impossibilidade de usucapião de bem público lato sensu.
Alguns poucos julgados esparsos permitiam a usucapião de bem público, quando se tratava de bem dominical (rectius: dominicial), de empresas públicas, sobretudo. A maioria dos julgados, incluindo o próprio STJ, porém, na esteira da doutrina mais tradicional, apontava mera detenção, e não posse vera e própria, de particular sobre bem público.
Agora, a Corte sumulou o assunto, sufragando o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência dos TJs e TRFs. A súmula 619 estabelece que a ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias.
A rigor, a Súmula condensa enunciado tecnicamente criticável, porque o particular que se fixa em bem público não é meramente detentor, mas sim possuidor, tanto é que pode defender a posse do bem público contra terceiros, por meio das ações possessórias. Sua posse, porém, não é ad usucapionem, dada a restrição prevista na CF/1988.
2. TEORIAS
Os manuais trazem a explicação da teoria subjetivista de Savigny contra a explicação objetivista de Jhering, pois estes dois foram os responsáveis por construir a noção de posse na Modernidade, tomando por base não a experiência europeia, mas o discurso de que o Direito Romano encaminharia as soluções mais adequadas.
Savigny entende que a posse precisa ser preservada pela necessidade da proteção da paz social. Para tanto, defende que a posse seria formada por dois elementos, quais sejam o objetivo e o subjetivo.
O elemento objetivo, o corpus, seria verificado na relação de fato entre o sujeito e a coisa, pela efetiva apropriação pelo sujeito da coisa. Já o elemento subjetivo, o animus domini, seria a intenção de se utilizar da coisa como sua, conforme o direito real que o sujeito entendesse estar ostentando.
Justamente por agregar como elemento indispensável da posse esse aspecto intencional, o aspecto anímico, é que a teoria de Savigny chama-se de “Teoria subjetivista” ou subjetiva. A posse sem animus, para ele, não seria autêntica posse, mas mera detenção ou um fâmulo de posse. Savigny vincula a posse à propriedade.
No entanto, a teoria de Savigny criava um enorme inconveniente, pois, de um lado, justificava posses que não deveriam ser protegidas e não justificava posses que deveriam ser protegidas. Assim, por exemplo, o ladrão soma os dois elementos, já que tem a coisa consigo e tem intenção de se tornar dono dela; no entanto, sua posse, injusta, não deveria ser protegida. De outro lado, o locatário não tem o elemento subjetivo, já que não possui a coisa como se sua fosse, mas deve ter proteção possessória, seja contra terceiros, seja contra o próprio locador, proprietário.
Jhering lança, então, a segunda grande obra sobre posse e questiona Savigny, no seguinte sentido: analisando a experiência romana, nunca um pretor teria feito análise da intenção do sujeito para deferir ou indeferir um interdito possessório. Não que se negue a existência do elemento intencional, mas ele se encontra contido na própria noção de corpus, que é o exercício de fato dos poderes atinentes à propriedade em relação à coisa. Para haver posse, portanto, bastaria o elemento objetivo do corpus.
Para Jhering, o fundamento da proteção possessória não seria a paz social, mas a proteção da própria propriedade. Justamente porque a posse é a exteriorização da propriedade, a proteção da posse seria a melhor maneira de proteger a propriedade, tutelando o proprietário nas situações em que o domínio é de difícil comprovação imediata.
Claro que Jhering enxerga que se pode proteger um possuidor que não é proprietário, mas numa análise econômica, mais vale arcar com o ônus de situações de proteção de um possuidor que não é proprietário para em geral poder proteger os proprietários por intermédio da posse. Por isso, diz ele, o possuidor é o proprietário presuntivo (por presunção), ou seja, todo proprietário é possuidor, mas nem todo possuidor é proprietário.
A partir dessa distinção mais clara entre posse e propriedade é possível analisar mais visivelmente a diferença entre posse direta e posse indireta. Por um contrato ou por um direito real sobre coisa alheia, seria possível bifurcar a posse, entre a posse direta, daquele que mantém o poder fático sobre a coisa, e a posse indireta, daquele que detém a propriedade.
Desde o Código Civil de 1916 ao atual de 2002, a literatura e a legislação procuram se adequar à teoria de Jhering. É flagrante a tentativa do Código Civil de 2002 de apagar eventuais resquícios de uma teoria subjetivista, pelo que adotou, expressamente, a teoria de objetivista Jhering no art. 1.196:
Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Nesse sentido, a proteção da propriedade por meio da posse se expressa em três momentos: na definição da posse (art. 1.196), nos mecanismos de aquisição de posse (art. 1.204) e nos meios de perda da posse (art. 1.223). Esses três momentos visam a demonstrar como a posse é uma exteriorização da propriedade.
Assim, em regra, a posse é encarada como fato, mas eventualmente ela é vista como direito. Pontes de Miranda soluciona tal problema dizendo que posse é fato, é suporte fático que compõe diversos fatos jurídicos. Ela, solitariamente, é apenas fato. A posse atrelada ao tempo pode gerar a formação do fato jurídico da usucapião.
A posse atrelada à violência por terceiros pode gerar pretensão à manutenção da posse. Ou seja, só existiriam efeitos jurídicos decorrentes de fatos jurídicos e, se há menção sobre o jus possessiones, é porque ela serviu de suporte fático para a conformação de determinado fato jurídico do qual decorrem direitos, pretensões, ações, exceções.
A maior parte da literatura jurídica mais contemporânea acaba compreendendo que a posse é um direito. Ao que me parece, não se deve excluir a perspectiva de que a posse também é fato, pelo que a teoria ponteana nos parece mais adequada. Nesse sentido, o Enunciado 492 da V Jornada de Direito Civil esclarece que a posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela.
Se é um direito, há de se questionar se ela é um direito pessoal (Direito das Obrigações) ou um direito real (Direito das Coisas). Orlando Gomes, em síntese, entende que é um direito real, ainda que eventualmente ceda diante de outro direito real, como a propriedade.
De fato, ainda que a posse não esteja no rol do art. 1.225, é possível visualizar que ela apresenta mais características de Direito Real do que de Direito Obrigacional, sobretudo em face do exercício, que se dá sem intermediários de alguém. Esse é certamente, o traço distintivo mais importante entre um direito obrigacional e um real; ao passo que naquele é necessário um intermediário (o devedor), neste não, o direito é exercido diretamente sobre a coisa.
Há ainda alguns autores que entendem a posse como um “direito de natureza especial”. Ainda que seja difícil categorizar a posse nos esquemas tradicionais binários (fato x direito; pessoal x real), não me parece que a criação de um tertium genus acabe com a dificuldade; é uma saída simples, mas que não resolve o problema. Valho-me, portanto, do próprio CC/2002: a posse é um direito das coisas, ainda que não um direito real.
3. FUNÇÃO SOCIAL
O ordenamento jurídico brasileiro não tem tratamento específico legal sequer para a função social da posse. Tanto a Constituição Federal de 1988 quanto o Código Civil de 2002 passaram ao largo da funcionalização da posse, ao contrário do que ocorreu com a função social da propriedade, está claramente contida tanto em sede constitucional quanto no ordenamento infraconstitucional.
No entanto, isso não impedia o reconhecimento, pela literatura jurídica, da funcionalização da posse já antes mesmo da Constituição de 1988. Com ela, porém, a posse ganha força no ordenamento, muito em razão da função social da propriedade.
A posse traz riqueza ao estatuto jurídico das titularidades, já que, em que pese tradicionalmente se entende-la meramente como fato, para parte dos autores há de se vê-la também como direito. Além disso, a posse é suporte fático de variados institutos jurídicos de direito das coisas, e não apenas relativamente à propriedade.
Quanto à propriedade, a posse pode servir, de um lado, como elemento de reforço. Isso porque o proprietário que possui a coisa reforça sua propriedade, seja exercendo a posse direta ou indiretamente, como mostraremos mais adiante. Por outro lado, porém, a posse serve como mitigação da propriedade, nas situações nas quais o proprietário não exerce posse, ainda que indiretamente.
A posse alheia, inclusive, é fundamento, de fato, como suporte fático, para a composição da usucapião. Somada ao tempo, a posse tem variados efeitos jurídicos relevantes.
Além disso, a posse serve como suporte fático não para extinção ou aquisição de direito real, mas para sua manutenção. Exemplo evidente é relativo à servidão; aquele que tem direito real de servidão deve exercer posse sobre a área que lhe serve, sob pena de extinção da servidão, pelo não uso. A posse, portanto, é forma de exteriorização da própria servidão, mantendo-a. A não-posse, ao contrário, dá causa à extinção da servidão.
A literatura, então, trata inicialmente da função social da posse, aos moldes da função social da propriedade (e do contrato e da empresa...). Em que pese não ser textual, entende-se que ela esteja positivada na Constituição Federal de 1988 implicitamente, em decorrência da função social da propriedade.
Essa compreensão deriva do movimento de funcionalização dos institutos jurídicos privados de cunho patrimonial. Apesar de se tratar de institutos tipicamente patrimoniais, o contrato, a propriedade, a empresa – e a posse – devem também ser funcionalizados para o atendimento dos anseios sociais, especialmente para que se alcancem os objetivos constitucionalmente previstos.
Os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são bastante claros, como se extrai do art. 3º, incisos:
- construir uma sociedade livre, justa e solidaria;
- garantir o desenvolvimento nacional;
- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
Para que se consiga erradicar a pobreza, parte-se de uma construção solidária da sociedade, que importa, por vezes, dar primazia à posse em detrimento da propriedade, quando o proprietário registral não torna sua propriedade apta ao cumprimento dos ditames sociais.
Assim, o proprietário de larga extensão de terras que não a torna produtiva, não a funcionaliza para o desenvolvimento nacional; ao contrário, emperra-o ao impedir que área agricultável seja utilizada adequadamente, aumentado a produção de gêneros alimentícios e sua consequente redução de preço no mercado. Igualmente, como não circula a propriedade, ele faz com que o preço da terra seja elevado, em vista da redução da oferta de área, o que faz com que os gêneros alimentícios tenham preço mais elevado.
O proprietário de imóvel urbano, ao não edificar nos parâmetros mínimos, faz com que o imóvel se torne alvo de criminalidade, fazendo com que os imóveis vizinhos sejam desvalorizados. Igualmente, faz subir os preços dos aluguéis, pela redução do número de imóveis aptos à locação. A municipalidade tem de manter serviços – iluminação pública, passagem de dutos, policiamento etc. – custeados pela população em uma área não aproveitada.
Numa ou noutra situação, os ônus são gerais, travando o cumprimento dos objetivos constitucionais. A posse, portanto, possui evidente função social, desde um nível mais individual (a desvalorização dos imóveis vizinhos a outro abandonado), passando por níveis locais (custo de manutenção de serviços em áreas desocupadas), até níveis mais amplos (como no caso do sobre preço de alimentos pela redução de área agricultável).
A literatura jurídica aponta alguns dispositivos como fundamento à função social da posse. O art. 1.238, parágrafo único, do Código Civil de 2002 estabelece que o prazo estabelecido para a usucapião extraordinária será reduzido a 10 anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Veja-se que aí é possível identificar a funcionalização da posse, e não da propriedade. A função social da propriedade está bem estabelecida no caput, que permite a aquisição da propriedade por aquele que lhe dá uso, que a torna funcional. O parágrafo único vai além, estabelecendo que caso essa posse não seja uma posse qualquer, mas uma posse funcionalizada, pode-se reduzir o prazo da pretensão aquisitiva.
Assim, se o possuidor, para além de possuir, possui a coisa e nela estabelece sua moradia habitual, está funcionalizando a posse. Socialmente, possuir para morar é algo que cumpre os objetivos constitucionais. A posse, aqui, é socialmente funcionalizada em prol da moradia, que é um direito social constitucional expressamente resguardado pelo art. 6º da Constituição Federal de 1988.
Igualmente, aquele que possui a coisa “realizando obras ou serviços de caráter produtivo” possui o bem imóvel com uma qualificação social. Não apenas possui, como poderia fazer, mas possui E torna a coisa produtiva. Tornar a coisa produtiva é também funcionalizar socialmente a posse, é qualificar essa posse, que poderia ser mera posse sem qualificação especial.
No mesmo sentido vai o art. 1.242, parágrafo único, que qualifica a posse daquele que tenha “realizado investimentos de interesse social e econômico”. A posse aqui é funcionalizada, já que a sociedade também ganha quando o possuidor realiza investimentos de interesse social e econômico.
A função social da posse, portanto, é uma espécie de “ganha-ganha”, já que quando o possuidor funcionaliza sua posse, ganha (pois uma coisa produtiva é melhor que uma não produtiva, economicamente falando), mas também ganha a sociedade (já que a produção será economicamente mais interessante para toda a comunidade).
Podemos identificar, em linhas gerais, que a funcionalização da posse se dá, em relação à sociedade, em dois eixos: o trabalho e a moradia. Essas parecem ser as diretrizes principais do que se entende por “social” da função da posse.
Os dispositivos legais orbitarão em torno desses dois elementos para funcionalizar a posse, ainda que nem sempre, como no caso do art. 10 da Lei 10.257/2001 (Estatuto das Cidades). Ainda que a previsão tivesse por base a moradia, anteriormente à Lei 13.465/2017, é de se ver que a funcionalização da posse, nesse caso, se dá pela perspectiva de regularização das áreas, notadamente depois dessa Lei.
Qualificar a posse pela moradia ou pelo trabalho já é um ganho social. Qualificá-la mais, com base na perspectiva de regularização ou urbanização de uma área informal, geralmente favelizada, é socialmente ainda mais relevante. Seja numa perspectiva mais egoística (áreas urbanizadas tendem a ter menos “gatos” que áreas favelizadas, pelo que o custo da minha energia elétrica tende a cair), seja numa perspectiva mais solidária (a qualidade de vida das pessoas desse local tende a melhorar expressivamente).
Ampliando a perspectiva do que se disse, a posse é funcionalizada atualmente por três eixos: trabalho, moradia e regularização fundiária. Ainda que a funcionalização tenha evidente perspectiva econômica, seu objetivo vai além, qual seja o cumprimento dos objetivos constitucionais. A função social, por vezes, pode ter impacto econômico negativo, seja para o possuidor que não possui, pela possibilidade de ter a área desapropriada ou mesmo usucapida, seja para a sociedade, numa perspectiva de redução da segurança jurídica proprietária.
Isso, porém, é irrelevante, porque o objetivo maior é funcionalizar a posse em prol da sociedade, no cumprimento dos objetivos que o constituinte se propôs em 1988.
As consequências econômicas são consequências, apenas, não devendo pautar a causa do instituto, que é social.
Não à toa, qualquer pessoa, seja física, seja jurídica, pode ser considerada possuidora. Segundo o Enunciado 236 da III Jornada de Direito Civil, considera-se possuidor, para todos os efeitos legais, também a coletividade desprovida de personalidade jurídica. Assim, o espólio também se considera possuidor, inclusive para fins de usucapião, por exemplo.
4. MODALIDADES
a) Composse
Em regra, o objeto da posse tem de ser exclusivo, pela própria natureza da posse. Porém, nada impede que a apreensão de uma coisa seja comum a mais de uma pessoa.
A composse não se confunde com o desdobramento entre posse direta e indireta (o proprietário é possuidor indireto da coisa locada, enquanto o locatário detém a posse direta). Ou seja, possuidores direto e indireto não possuem composse – aqui, o grau de posse é que varia, já que um dos possuidores fica privado da coisa.
A composse exige que todos possam utilizar a coisa diretamente, sem excluir os demais, segundo o disposto no art. 1.199 do Código Civil de 2002, pelo que diversos possuidores podem exercer a posse simultaneamente. Ou seja, ela é semelhante ao condomínio, onde todos são proprietários de uma cota abstrata da coisa, de modo indivisível ou pro indiviso.
Inversamente à composse pro invidiso de um apartamento de dois herdeiros, por exemplo, parte da doutrina estabelece haver também composse pro diviso. A percepção de que a composse pode ser pro indiviso, porém, é controvertida, já que nesta modalidade a parte de cada possuidor estaria localizada e, consequentemente, a posse seria individual em cada parte.
Na composse divisível ou pro diviso cada um possuiria uma fração real da posse. Seria o caso de dois herdeiros que plantam, cada qual, em metade da área, ainda não partilhada na forma da lei.
De qualquer forma, cada um e qualquer um dos compossuidores pode praticar os atos possessórios para defesa da coisa comum. Extinta a relação jurídica originária ou o estado de indivisão da coisa, cessa a composse, como ocorre, por exemplo, na partilha dos bens dos herdeiros e na dissolução da sociedade matrimonial.
O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, tem entendimento de que um dos compossuidores pode proteger sua posse contra outro compossuidor, se a tiver molestada. É o caso de um herdeiro que esbulha a posse do outro, relativamente a um bem ainda impartilhado (REsp 537.363).
É precisamente essa decisão do STJ que nos deixa em dúvida a respeito do cabimento da composse pro diviso. Isso porque, ao que me parece, a Corte utilizou a composse como se fosse sinônima de condomínio (copropriedade), sendo que os institutos não se confundem. Tecnicamente falando, portanto, nos parece que a composse pro diviso deriva mais de confusão técnica do que efetivamente de uma hipótese de composse.
b) Espécies de posse
As classificações da posse são fundamentais para que se compreenda os efeitos que dela derivam. Há quem crie algumas classificações que são, a nosso ver, desnecessárias, já que não servem a propósito algum que não o de meramente classificar.
Inicialmente, há de se distinguir o direito de posse e o direito à posse. O jus possidendi, ou direito à posse, é o direito a ter posse que decorre do direito de propriedade. Vale dizer, é o “direito a possuir o que é meu”. Já o jus possessionis, ou direito de posse, é o direito de possuir a coisa, sem que isso decorra da propriedade. Vale dizer, é o “direito de manter a posse que eu tenho”.
Dito isso, passamos a mostrar, agora, cada uma das espécies da posse.
- Quanto ao vício objetivo • Classificação adotada pelo art. 1.200 do Código Civil de 2002, que considera a aquisição da posse de modo lícito ou ilícito:
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A posse violenta não se liga apenas à violência física, mas sim à força. Por isso, violenta é a posse obtida com uso de força física, violência moral ou mesmo grave ameaça. Essas situações se emoldam ao gênero “usurpação”, que engloba o tipo penal de “esbulho possessório” previsto no art. 161, inc. II, do Código Penal de 1940.
A análise da (in)justiça da posse é objetiva. Não se questiona a vontade do possuidor, basta analisar se houve violência, clandestinidade ou precariedade. E ponto. Veja-se, porém, que a posse em si não é (in)justa; o vício trata da vítima do ato, pelo que somente ela pode arguir a injustiça, jamais terceiro. Por isso, o próprio possuidor injusto pode defender a posse contra terceiros, inclusive se valendo dos interditos; estará ele desamparado apenas em face da vítima (efeitos inter partes e não erga omnes).
Ademais, atente para não confundir a posse precária com a detenção (ato de tolerância). Na posse precária, o possuidor tivera outorgada a posse, mas passou a abusar dela. Por exemplo, emprestei, via comodato, meu imóvel, com prazo; chegado o prazo, o comodatário não devolve, configurando-se a posse precária.
Ao contrário, na detenção, não há negócio jurídico prévio a outorgar a posse à pessoa. Por exemplo, um colega pega, pega em sua mesa, um livro, sem que você se manifeste; não há posse, mas mera detenção, porque você apenas tolerou que ele o fizesse, mas não entabulou comodato.
Já na posse de boa ou má-fé, aí sim, analisa-se o elemento anímico, necessita-se avaliar a vontade do agente.
2. Quanto ao vício subjetivo • A posse depende de avaliação do estado anímico do possuidor. Em regra, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida, segundo estabelece o art. 1.203 do Código Civil de 2002:
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Segundo Venosa, a boa-fé se equipara ao erro, daí sua vinculação com a “ignorância”. No entanto, sempre se a analisa subjetivamente. Segundo Pontes de Miranda, há má-fé quando o possuidor está convencido de que sua posse não goza de legitimidade jurídica, mas, ainda assim, mantém-se na posse da coisa. Aqui, mais uma vez, é necessário apelar para a noção de homem médio.
No entanto, não há posse de má fé quando há justo título. Mas, e o que é justo título?
A jurisprudência, especialmente, alargou a compreensão a respeito do tema de forma paulatina. Mais recentemente, documentos particulares passaram a serem aceitos como suficientes para a demonstração de existência de presunção de boa-fé.
Nesse sentido, o Enunciado 302 da IV Jornada de Direito Civil esclarece que pode ser considerado justo título o ato jurídico capaz de transmitir a posse ad usucapionem, observado o disposto no art. 113; vale dizer, observado o princípio da boa-fé objetiva.
Indo além, o Enunciado 303 da IV Jornada de Direito Civil entende que se considera justo título o justo motivo que autoriza a aquisição derivada da posse, esteja ou não materializado em instrumento público ou particular. Esse enunciado traz uma compreensão de justo título na perspectiva da função social da posse, e não apenas na perspectiva de “papel”, por assim dizer, afastando-se o excessivo formalismo calcado na visão proprietária da posse.
3. Quanto ao título • A partir da noção mais tradicional de título causal, um título que representa a causa do negócio jurídico, fala-se em “causa representativa de transmissão” da posse. Assim, pode ser ela:
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NÃO HÁ COINCIDÊNCIA ENTRE POSSE JUSTA E DE BOA-FÉ E POSSE INJUSTA E DE MÁ-FÉ. EVIDENTEMENTE, O MAIS COMUM É QUE AMBAS CAMINHEM JUNTAS: A POSSE DE BOA-FÉ SERÁ JUSTA E A POSSE DE MÁ-FÉ SERÁ INJUSTA. MAS NEM SEMPRE!
ASSIM, SE ALGUÉM ADQUIRIU A POSSE DE OUTREM QUE A ADQUIRIU COM VIOLÊNCIA, TERÁ POSSE DE BOA-FÉ, MAS INJUSTA. VOCÊ, AMEAÇANDO O PROPRIETÁRIO, EXPULSA-O DA TERRA; SUA POSSE É DE MÁ-FÉ – PORQUE SABE QUE HÁ UM OBSTÁCULO À POSSE – E INJUSTA – PORQUE DERIVADA DE VIOLÊNCIA.
O PROPRIETÁRIO, COM MEDO, “SOME” E VOCÊ VENDE A TERRA A MIM, QUE IGNORO O OCORRIDO. MINHA POSSE CONTINUA SENDO INJUSTA, PORQUE DERIVADA DE VIOLÊNCIA – JÁ QUE O VÍCIO É OBJETIVO, É IRRELEVANTE SE EU SEI OU NÃO, O RELEVANTE É O ATO, QUE FORA VIOLENTO. NO ENTANTO, MINHA POSSE, DIFERENTE DA SUA, É DE BOA-FÉ, POIS EU IGNORO A EXISTÊNCIA DE UM OBSTÁCULO À POSSE, POIS IGNORO O OCORRIDO – JÁ QUE O VÍCIO É SUBJETIVO, PELO QUE RELEVANTE QUE NÃO SAIBA EU DO FATO. ASSIM, MINHA POSSE SERÁ INJUSTA, MAS DE BOA-FÉ.
POR OUTRO LADO, VOCÊ PODE INVADIR UMA ÁREA DE TERRAS À LUZ DO DIA, CONSTRUINDO UMA CASA NA BEIRA DA ESTRADA E SEM TER QUALQUER RELAÇÃO JURÍDICA PRÉVIA COM O PROPRIETÁRIO, OU SEJA, SEM VIOLÊNCIA, CLANDESTINIDADE OU PRECARIEDADE. SUA POSSE, CONSEQUENTEMENTE, É JUSTA.
NO ENTANTO, VOCÊ SABE QUE A TERRA ESTÁ “AO DEUS-DARÁ” PORQUE O DONO MORREU E OS FILHOS, QUE MORAM DISTANTES, TÊM DIFICULDADES EM TOMAR PROVIDÊNCIAS. SUA POSSE, PORTANTO, É DE MÁ-FÉ. ASSIM, SUA POSSE SERÁ JUSTA, MAS DE MÁ-FÉ.
ISSO PORQUE O FATO DE A POSSE SER JUSTA OU INJUSTA TEM EFEITOS NO CAMPO DA USUCAPIÃO E DAS AÇÕES POSSESSÓRIAS: CABE AÇÃO POSSESSÓRIA DO POSSUIDOR CONTRA QUALQUER PESSOA, EXCETO CONTRA O POSSUIDOR JUSTO (EFICÁCIA INTER PARTES); CABE AÇÃO POSSESSÓRIA DO POSSUIDOR JUSTO ERGA OMNES.JÁ O FATO DE A POSSE SER DE BOA-FÉ OU DE MÁ-FÉ TEM EFEITOS NO CAMPO DOS DIREITOS DO POSSUIDOR: FRUTOS, BENFEITORIAS, INDENIZAÇÃO, RETENÇÃO ETC.
Mas, e a posse de má-fé ou a posse injusta se manterão sempre de má-fé ou injusta?
A rigor, o art. 1.203 estabelece uma presunção relativa a partir do “princípio da continuidade do caráter da posse”. Presume-se que a posse se manterá com os mesmos caracteres com os quais foi adquirida. Ou seja, a posse se mantém, presumivelmente, no mesmo estado no qual se iniciou.
No entanto, pode ocorrer que a posse de boa-fé se transmute em posse de má-fé se o possuidor passar a não mais ignorar o vício, seja judicialmente – através de citação de uma ação de reintegração de posse –, seja extrajudicialmente – por exemplo, aparece o proprietário com a matrícula do imóvel em mãos –, a teor do art. 1.202. O inverso, porém, não é possível, já que o possuidor de má-fé, que sabe do obstáculo, não tem como “deixar de saber” dele.
Pode ocorrer igualmente que a posse injusta se transforme em posse justa. A posse violenta – que é mera detenção, até que cesse a violência – pode se tornar pacífica. Aqui, em realidade, ocorre a chamada interversão (interversio possessionis), qual seja o fenômeno por meio do qual o mero detentor (possuidor precário) torna-se verdadeiro possuidor (possuidor legítimo).
Na prática, é muito difícil estabelecer quando houve essa passagem, que terá consequências importantes, inclusive para a usucapião. No caso do conhecimento do vício extrajudicialmente, as circunstâncias têm de ser notórias, segundo Orlando Gomes. O inverso também ocorre. Se o possuidor possui pacificamente, mas usa da força para manter a posse, sua posse, justa, se torna posse injusta a partir dali.
A partir da leitura do art. 1.208, parece possível convalidar a posse injusta por clandestinidade e/ou violência em posse justa. Já a posse injusta por precariedade não poderia ser convalidada em posse justa, em homenagem ao princípio da continuidade do caráter da posse.
Como convalidar a posse injusta em posse justa?
A construção teórica comum utiliza um parâmetro objetivo: o prazo de ano e dia. Depois desse lapso temporal, a posse injusta, mesmo que obtida com violência ou clandestinidade, se transmutaria em posse justa, para todos os fins.
Parte dos autores, porém, filia-se à corrente de que essa análise deve ser feita de maneira casuística, sobretudo a partir da verificação da função social da posse. Nesse sentido, o Enunciado 237 da III Jornada de Direito Civil prevê que é cabível a modificação do título da posse - interversio possessionis - na hipótese em que o até então possuidor direto demonstrar ato exterior e inequívoco de oposição ao antigo possuidor indireto, tendo por efeito a caracterização do animus domini.
4. Quanto ao desdobramento da posse •Consequência da "Teoria objetiva" de Jhering, utilizada pelo Direito brasileiro. Podem existir, portanto, duas relações de posse sobre a coisa, sem que elas se anulem:
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O possuidor indireto ou mediato confia a coisa a outrem, possuidor direto ou imediato, por certo tempo. Mas não é apenas o possuidor (em sentido estrito) quem detém a posse direta, mas todo aquele que tem alguma forma de posse autônoma (usufrutuário, usuário, locatário, depositário, tutor, inventariante), consubstanciada em algum direito real sobre coisa alheia ou direito pessoal de uso e/ou gozo.
Trata-se de uma ficção jurídica, mas de importância prática enorme, conforme se vê no art. 1.197. O dispositivo estabelece que a “posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto”. De acordo com o Enunciado 76 da I Jornada de Direito Civil, o possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra o indireto, e este, contra aquele.
A posse direta é sempre uma, ou seja, não é possível haver mais de uma posse direta. Será direta a posse sempre daquele que “possui” efetivamente a coisa. Há possibilidade de desdobramento da posse indireta, inversamente, ou seja, é possível haver mais de uma posse indireta. É o chamado desdobramento possessório, que comporta a verticalização da posse em graus variados.
Exemplificando, uma locação. O locador é possuidor indireto, ao passo que o locatário é possuidor direto. O locatário, porém, pode sublocar o imóvel. Nesse caso, se tornará possuidor indireto, sendo que a posse direta permanecerá com o sublocatário. O locatário, portanto, terá posse indireta, tal qual do proprietário.
O mesmo ocorre no caso de existência de um direito real limitado. O proprietário, ao instituir o usufruto sobre o bem, torna-se possuidor indireto, sendo direto o usufrutuário. O usufrutuário, por sua vez, torna-se também possuidor indireto quanto loca o imóvel, tornando-se o locatário o possuidor direito. Poderia ele também se tornar possuidor indireto ao sublocar a coisa, evidentemente.
De tal modo, nem sempre o possuidor indireto será o proprietário, já que eventualmente o titular de um direito real ou obrigacional, ao ceder a posse direta a um terceiro, torna-se também possuidor indireto.
Necessário, portanto, sempre se atentar porque a posse direta sempre será uma, daquele que mantem a conexão material com a coisa.
Por fim, é possível entender que os bens públicos não são passíveis de serem usucapidos, uma vez que textualmente o artigo 183, § 3º proíbe tais atos, entretanto a discussão abre margem quando seguimos o campo da função social da propriedade, geração de renda, emprego e outros benefícios gerados pela atividade produtiva sobre o imóvel público, até então abandonado.
Desta feita, a nossa visão é de que a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, por ofensa ao próprio princípio constitucional da função social da posse, uma vez que enquanto o bem privado “tem função social”, o bem público “é função social”, não podendo permitir num país como o Brasil, que determinado município possa se manter proprietário de bens desafetados e sem qualquer perspectiva de utilização para o interesse público, se desobrigando ao cumprimento da função social da propriedade.